Tenho uma confissão a fazer. Noite passada, enquanto você dormia, eu contei todas as vinte e cinco pintas assimetricamente espalhadas pelas suas costas, memorizei suas localizações e dei nomes a todas elas.
Tem a Clarice, a Sandra, o Pedro, a Tereza, o Caio – todos nomes que eu, emocionado que sou, já pensei secretamente em dar ao nosso primeiro rebento.
Enquanto você dormia, brinquei de ler suas tatuagens em braile e me permiti demorar os dedos um pouco mais naquela que eu tenho quase certeza de que é um balão, mas você jura de pé junto que é um dente-de-leão e naquela que se parece um pavão, mas que você jura que é uma fênix.
Enquanto você dormia, fotografei mentalmente a cascata dourada dos teus cabelos caindo sobre os ombros alvos e guardei os negativos na gaveta da memória marcada com a etiqueta “Ela”.
Enquanto você dormia, organizei a sua coleção de discos. Não por ordem alfabética ou por gênero musical, mas pela sua variação de humor no decorrer da semana.
Tem José González para as segundas tediosas; City and Color para as terças mais ou menos; Vitor Ramil para as quartas esperançosas; Ney Matogrosso para as quintas introspectivas; Francis Cabrel para as sextas de fogo; Flávio Venturini para os sábados de libertação e Nina Simone para os domingos de comunhão nada católica entre nossos corpos.
Enquanto você dormia, escrevi um bilhete de agradecimento por sempre me deixar dormir no canto da cama e o guardei debaixo do seu travesseiro. Pode parecer pouco para alguns, mas deixar alguém dormir no canto da cama deveria ser considerado prova cabal de amor verdadeiro.
Enquanto você dormia, li junto ao seu ouvido os trechos mais bonitos daquele livro do José Luís Peixoto que sempre te indiquei e que você nunca pode ler por falta de tempo. Posso até jurar que ouvi você suspirar nas partes mais emocionantes.
Aproveitei também para escrever nele aquela dedicatória que você tanto me cobrava. Nela está escrito: para aquela que conquistou meu coração desde a primeira cantada de pedreiro.
Enquanto você dormia, fiz carinho nos seus cabelos e apreciei teu corpo deitado, com curvas mais perigosas que de toda a BR 101 e me vi refletido em você não como uma metade, mas como um inteiro.
Enquanto você dormia, criei um filme na minha cabeça. Um filme da nossa vida e que seria dirigido por Almodóvar. Teria sexo, humor, romance, drama, quem sabe até uma confusão ou duas para apimentar as coisas; mas tudo terminaria bem, e os créditos subiriam enquanto estivéssemos sentados e rindo em uma mesa cheia de amigos.
Enquanto você dormia, tentei imaginar outra pessoa no seu lugar e não consegui.
Enquanto você dormia, pensei nos seus defeitos e percebi que amo todos eles, um por um. Mais chata que gente perfeita, só gente que quer ser perfeita. É que seus defeitos me lembram de que você, assim como eu, é humana.
Enquanto você dormia, cochilei por três vezes (porque ninguém é de ferro) e em cada um deles sonhei contigo. No primeiro deles nos casávamos; no segundo, tínhamos filhos; e no terceiro morríamos bem velhinhos e de mãos dadas.
Enquanto você dormia, a tua paz me encheu de vida e não houve nenhum pensamento capaz de me tirar a certeza de que era exatamente ali que eu queria estar.
Existem lugares que foram feitos para estarmos e permanecermos, outros para passarmos e admirarmos. A beleza da vida! Encheu-me de lágrimas!