Tarô e uma canção de Francis Cabrel
De nada adianta uma vida composta só de cores vibrantes. Entre elas é preciso haver o cinza.
Cinco da tarde, pausa para um café. Na escrivaninha, uma cópia de El Monte Análogo faz companhia à biografia de Joseph Needham e às anotações, feitas na noite anterior, do livro que estou escrevendo. Junto a eles, como um observador desatento, a carta Le Pendu (ou O Enforcado) do tarô de Marselha, que tirei mais cedo, antes de começar a trabalhar.
Uma feliz coincidência para um dia introspectivo, pautado na memória, nos planos feitos, desfeitos e refeitos. Um dia cinza, como diriam por aí. Um entre tantos outros. Presto atenção aos detalhes da carta.
A figura aparece com a perna esquerda pendurada e a direita dobrada sob ela. Está separado do mundo exterior, completamente focado em si mesmo. Os galhos das árvores, que o ligavam à sociedade, estão cortados. Ele está com os braços e as mãos atrás das costas, recusando-se a receber tudo o que vem do lado de fora, do mundo exterior. Medita profundamente enquanto observa o mundo de cabeça para baixo, pelas lentes da subjetividade. Uma cena de imobilidade, de segredos guardados nas mãos escondidas.
Imerso na simbologia do pobre rapaz invertido, deixo escapar um sorriso quando, no rádio conectado no meu celular, La Cabane du Pêcheur começa a tocar numa playlist aleatória. Entendam que não sou afeito a superstições e até minha relação com o tarô não passa de pura especulação metafísica, sem traços esotéricos ou divinatórios.
Por outro lado, a parte mezzo junguiana/mezzo couliana do meu ser apita sempre que algo assim acontece – os tais dos eventos acausais, também conhecidos como sincronicidade. Nessas horas, a parte cética, científica e racional de mim não se incomoda em sair para dar uma volta. A política da boa vizinhança impera por aqui.
O motivo do riso e espanto é a relevância da canção. Não se trata de uma música qualquer. Não para mim. Por isso, resolvo estender a pausa e me deixo repousar na cadeira um pouco mais, ouvindo atentamente à canção de Cabrel.
Reparo no fim do dia que já se avizinha e, repassando mentalmente minha reclamação anterior de que havia sido um dia cinza, me apercebo do tamanho do equívoco e da contradição que havia cometido até aquele momento.
No enredo de Cabrel, um pescador solitário se prepara para encerrar mais um dia em sua cabana, quando recebe a visita de uma viajante perdida em seus pensamentos e orações. A moça traz consigo dúvidas e incertezas sobre o amor e pede conselhos ao humilde trabalhador do mar.
Durante a conversa, o pescador faz uma observação inusitada:
Tes rêves sont toujours trop clairs ou trop noirs
Alors, viens faire toi-même le mélange des couleurs
Sur les murs de la cabane du pêcheur
Viens t'asseoir
Se mantemos o último verso diretamente conectado aos versos anteriores, é como se o sábio pescador pedisse algo como: “Os seus sonhos ou são muito claros ou muito escuros. Então, venha sentar-se na minha cabana e misture você mesma essas cores”.
No entanto, se retiramos o último verso, deixando-o como uma ponte para a próxima estrofe, o que ele estará dizendo, na verdade é: “Os seus sonhos ou são muito claros ou muito escuros. Então, venha você mesma misturar essas cores nas paredes da minha cabana... Vem, sente-se”.
E se assim for, temos aí uma grande diferença interpretativa. Na primeira, um puro exercício mental; enquanto na segunda vemos surgir um elemento importante para essa mistura acontecer: as paredes da cabana, que por serem feitas de madeira desgastada, têm coloração acinzentada.
Daí temos a lição de que de nada adianta uma vida composta só de cores vibrantes ou do puro preto no branco. Entre elas é preciso haver o cinza, que surge como uma experiência limiar que desnuda aquilo que fica encoberto.
Em um mundo tão polarizado, tão preto no branco, dar cores sólidas à vida significa justamente passar por zonas cinzentas e habitá-las de maneira poética e criativa. Abrir mão de uma narrativa linear, reta e inflexível, para dar espaço ao improviso, ao inesperado, ao imperfeito.
O cinza, como canta sabiamente Mateus Aleluia, é um início em cor. Ou pelo menos deveria ser.